Reformulação das Fichas de Avaliação de Risco 

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Reformulação das Fichas de Avaliação de Risco
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Reformulação das Fichas de Avaliação de Risco

A recomendação para a reformulação das fichas de avaliação de risco para situações de violência doméstica, de modo a garantir uma maior proteção das vítimas, recentemente publicada em DR, é o ponto de partida para a análise de Miguel Pereira de Sousa.


No dia 18 de março de 2021, foi publicada em Diário da República a Resolução da Assembleia da República n.º 81/2021, (“Resolução 81/2021”) que recomenda ao Governo a reformulação das fichas de avaliação de risco para situações de violência doméstica, a fim de garantir uma maior proteção das vítimas.

 

As fichas de avaliação de risco correspondem essencialmente a dois inquéritos (RVD-1L e RVD-2L) compostos por 20 perguntas de resposta fechada de tipo binário (“sim / não”), que são realizados pelas forças policiais em situações de violência doméstica desde 2014 e aplicados às respetivas vítimas no momento em que é elaborado o Auto de Violência Doméstica, após a apresentação da queixa-crime.

 

A ficha de avaliação de risco RVD-1L é aplicada no momento em que há uma participação de violência doméstica ou aquando de um aditamento a um auto. Já a ficha RVD-2L é aplicada no momento em que se procede à reavaliação do risco, i.e., num momento posterior ao do registo da participação de ocorrência, constituindo uma repetição das perguntas formuladas e respondidas anteriormente.

 

Depois de o agente policial preencher as fichas referidas de acordo com as respostas que lhe forem dadas oralmente pela vítima, é indicado o nível de risco correspondente à situação de violência doméstica a que a vítima é exposta, podendo o risco ser classificado como baixo, médio ou elevado, em função do número de respostas afirmativas e de respostas negativas.

 

No entanto, como sustenta Ana Sofia Carneiro Ferreira na sua dissertação de mestrado intitulada Análise linguística forense das Fichas de Avaliação de Risco em situações de violência doméstica, as questões formuladas nas referidas fichas padecem de diversas imprecisões ao nível: (i) sintático; (ii) semântico; (iii) pragmático-discursivo; e (iv) de coerência e de coesão.

 

Ao nível sintático, algumas perguntas constantes destas fichas apresentam uma estrutura complexa, mediante o recurso, por exemplo, às conjunções copulativa e disjuntiva na mesma questão (“e/ou”) e a interrogações construídas na negativa, o que dificulta a sua compreensão pela vítima e pelas forças de segurança e poderá conduzir a que a única resposta de tipo binário que a vítima tem de dar não reproduza fielmente a situação a que a vítima está sujeita.

 

Existem perguntas de tal modo complexas que poderiam ser desdobradas em diversas outras, o que aumenta a probabilidade de a vítima pretender dar respostas diferentes a cada uma das questões incorporadas na única questão formulada na ficha, ficando comprometida a exatidão da resposta da vítima.

 

Na verdade, a forma como algumas questões estão formuladas não permite compreender a que segmento da pergunta em apreço corresponde a resposta que a vítima dará. A título de exemplo, refira-se a questão n.º 3 das referidas fichas, a qual poderia ser segmentada em sete questões: «O/A ofensor/a já tentou estrangular (apertar o pescoço), sufocar, afogar a vítima ou outro familiar?».

 

A nível semântico, algumas questões das fichas referidas contêm termos que podem dar azo a diversas interpretações, porquanto o sentido que assumem dentro de um ramo da ciência especializada difere do sentido de linguagem do cidadão comum, como por exemplo os termos “armas” e “ameaças”.

 

Do ponto de vista pragmático-discursivo, a formulação de algumas perguntas constantes das fichas referidas poderá beneficiar o agressor. Efetivamente, existem questões dirigidas a saber se o agressor padece de instabilidade psicológica ou emocional, se enfrenta problemas financeiros ou problemas relacionados com o consumo de álcool ou outras drogas, colocando a tónica na instabilidade e problemas referidos e assim dissociando a responsabilidade do agressor da causa do crime de violência doméstica.

 

Ao nível da coerência, assiste-se ao emprego indiscriminado da conjunção disjuntiva “ou” e do sinal gráfico “/” para refletir tanto expressões sinónimas como alternativas, sem que as fichas referidas facultem um critério orientador relativo ao contexto específico em que é usada a conjunção disjuntiva ou o sinal gráfico.

 

Em relação à coesão, algumas perguntas das fichas referidas enfermam de falta de rigor, porquanto se assiste à alternância entre as expressões “agregado doméstico” e “agregado familiar”, sendo que as duas expressões não têm o mesmo significado. Na verdade, enquanto a expressão “agregado doméstico” alude a pessoas que habitem a mesma casa, independentemente de serem ou não familiares, a expressão “agregado familiar” pressupõe a pertença à mesma família.

 

Neste sentido, a Resolução 81/2021 recomenda que as perguntas do questionário sejam redigidas de forma mais clara, acessível, percetível e objetiva, com o intuito de promover a exatidão das respostas das vítimas e facilitar a sua compreensão pelos elementos das forças de segurança.

 

Adicionalmente, as perguntas constantes das fichas não abordam a situação dos menores que tenham presenciado ou sido agredidos no âmbito deste crime, não permitindo conhecer o grau de risco a que os mesmos estão sujeitos.

 

Por conseguinte, a Resolução 81/2021 recomenda também a inclusão de questões relativas à existência de menores do agregado familiar que tenham testemunhado atos ou sido agredidos em contexto de violência doméstica, a fim de obter uma melhor aferição do risco a que esses menores estão expostos e das medidas de proteção a adotar, e o regular acompanhamento destas.

 

Autor: Miguel Pereira de Sousa