Podem os contribuintes confiar na atuação da Autoridade Tributária e Aduaneira? 

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Podem os contribuintes confiar na atuação da Autoridade Tributária e Aduaneira?
ARTIGOS DE OPINIÃO

Podem os contribuintes confiar na atuação da Autoridade Tributária e Aduaneira?

 

A existência de uma relação de proximidade e de confiança entre a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) e os contribuintes é essencial para a prossecução do interesse público, para o reforço das garantias dos contribuintes e para a atração e manutenção do investimento estrangeiro em Portugal.

 

Importa, pois, analisar se a atuação da AT tem contribuído para o reforço de tal relação de confiança e de que forma é que as alterações legislativas introduzidas, em 2021, ao artigo 68.º A, n.º 4, da Lei Geral Tributária (“LGT”) podem representar um contributo para reforçar tal confiança.

 

É indiscutível que a atuação da AT tem, por vezes, gerado alguma desconfiança dos contribuintes relativamente aos motivos e intenções da AT. A título de exemplo, a emissão, pela AT, de informações vinculativas, orientações genéricas ou meras instruções internas que contrariam, de forma ostensiva, os princípios de hermenêutica jurídica que devem presidir à interpretação das normas jurídicas e a jurisprudência dos tribunais superiores não só põe em causa a relação entre os poderes administrativo e judicial como tem contribuído para um clima de desconfiança dos contribuintes relativamente à atuação da AT.

 

Importa salientar que a AT está vinculada ao princípio constitucional da legalidade tributária e não pode legitimamente assumir a posição de legislador (ainda que indireto) nem integrar eventuais lacunas existentes na legislação tributária (integração de lacunas que é, de resto, proibida em normas de incidência tributária).

 

Acresce que as decisões das AT são, em regra, sindicáveis pelos tribunais (judiciais e arbitrais) e os contribuintes têm hoje diversos meios de reação ao seu dispor para contestar quer a exigibilidade dos impostos cobrados pela AT quer a legalidade dos atos tributários ou em matéria tributária, provocando, assim, a intervenção dos tribunais que têm assumido um papel muito importante e ativo no controlo da legalidade da atuação da AT.

 

Mas se os tribunais devem ter a última palavra em litígios entre a AT e os contribuintes, não deixa de ser contraproducente e até contrário ao princípio constitucional da prossecução do interesse público que a AT persista numa atitude de litigância em processos cuja probabilidade de obtenção de um desfecho favorável para a AT é praticamente nula por existir jurisprudência, dos tribunais superiores, consolidada e favorável aos contribuintes.

 

Foi neste contexto que o legislador estabeleceu, em 2014, o dever legal da AT de rever as suas orientações genéricas em conformidade com a jurisprudência dos tribunais superiores.

 

Sucede que a AT ofereceu sempre alguma resistência em acatar a jurisprudência dos tribunais superiores, o que levou a que o legislador sentisse necessidade de introduzir alterações à norma da LGT que consagra o referido dever legal.

 

Em concreto, o artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT, na redação introduzida pela Lei n.º 7/2021, de 26 de fevereiro de 2021 (“Lei 7/2021”), passou a estabelecer que:

 

A administração tributária deve rever as orientações genéricas (...) quando:

 a) Versem sobre matéria apreciada em decisão sumária por um tribunal superior, nos termos do artigo 656.º do Código de Processo Civil; ou

 b) Exista acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo; ou

 c) Exista jurisprudência reiterada dos tribunais superiores, manifestada em cinco decisões transitadas em julgado no mesmo sentido, sem que existam decisões dos tribunais superiores em sentido contrário igualmente transitadas em julgado, em número superior.”.

 

Antes das alterações introduzidas pela Lei 7/2021, a norma do artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT era demasiado vaga na medida em que estabelecia apenas que a AT estava obrigada a rever as suas orientações genéricas “(...) atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores.”.

 

Foi precisamente o reduzido alcance prático da referida norma que levou o legislador a densificar, em 2021, as situações em que a AT está obrigada a rever as suas orientações genéricas, passando a estar expressamente previsto que as orientações genéricas da AT devem ser revistas sempre que exista: (i) uma decisão sumária de um tribunal superior; (ii) um acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”); ou, (iii) cinco acórdãos do STA no mesmo sentido sem que existam acórdãos, em número igual, em sentido divergente.

 

As alterações introduzidas à referida norma são de louvar e representam um contributo relevante no restabelecimento (ainda que forçado) da confiança mútua que deve existir entre a AT e os contribuintes.

 

Com efeito, ainda que não esteja expressamente prevista qualquer cominação para o incumprimento do referido dever legal pela AT, parece evidente que, na sequência das alterações introduzidas pela Lei 7/2021 à norma constante do artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT, os contribuintes devem poder iniciar uma ação administrativa para efeitos de condenação da AT à prática do ato administrativo devido, sob pena de os contribuintes continuarem reféns da eventual inércia e atuação (ilegal) da AT.

 

Deve, assim, considerar-se que todas as orientações genéricas que não se conformem com a jurisprudência dos tribunais superiores, à revelia da opção do legislador nesta matéria, padecem de vício de violação de lei, o que não pode deixar de assumir relevância jurídica e, designadamente, não pode deixar de conceder aos contribuintes o direito a instar, ainda que por intermédio de uma ação administrativa, a AT a cumprir a lei e, em concreto, a rever as suas orientações genéricas em conformidade com tal jurisprudência.

 

A título de exemplo, se numa das situações expressamente estabelecidas no artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT (e.g. se existir um acórdão de uniformização de jurisprudência do STA que seja favorável aos contribuintes) a AT decidir emitir uma liquidação adicional de imposto a um contribuinte com base em doutrina constante de orientações genéricas contrárias à referida jurisprudência uniformizada, deve ser reconhecido o direito do contribuinte a forçar a AT a cumprir o dever legal que sobre si impende.

 

Uma solução diferente da que acima se enunciou implicaria que os contribuintes ficassem reféns da eventual inércia da AT, incentivaria o incumprimento, pela AT, do disposto no artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT, seria contrária à intenção do legislador e retiraria qualquer conteúdo útil à referida norma.

 

Sem prejuízo do exposto, parece-nos que o legislador podia e devia ter ido muito mais longe nesta matéria.

 

Em primeiro lugar, o legislador devia ter consagrado expressamente todas as consequências jurídicas do incumprimento, pela AT, do dever legal de revisão das suas orientações genéricas em conformidade com jurisprudência dos tribunais superiores.

 

 

Em concreto,  o incumprimento do referido dever legal pela AT: (i) devia ser um dos fundamentos de dispensa de garantia a prestar pelos contribuintes para efeitos de suspensão de eventual processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva da dívida de imposto, e, (ii) devia impedir a AT de cobrar juros compensatórios aos contribuintes.

 

 

Para além do exposto, deveria, igualmente, estabelecer-se um vício de ilegalidade autónomo dos atos praticados pela AT nos casos em tais atos (tributários ou em matéria tributária) tenham por base orientações genéricas desconformes à jurisprudência dos tribunais superiores.

 

Em segundo lugar, os procedimentos tributários que tenham por objeto a análise de questões já tratadas pelos tribunais superiores deviam ser enquadrados como procedimentos abreviados com prazos de decisão mais curtos e com prolação de decisões sumárias de deferimento liminar.

 

Em terceiro lugar, devia ter sido consagrado um prazo dentro do qual, uma vez reunidas as condições legais para o efeito, a AT ficaria obrigada a rever as suas orientações genéricas em conformidade com a jurisprudência dos tribunais superiores.

 

Por fim, o legislador devia ter estabelecido um dever especial de fundamentação, pela AT, dos atos (tributários ou em matéria tributária) emitidos contra a jurisprudência dos tribunais superiores. Em concreto, a AT devia ser obrigada a justificar, de forma mais detalhada, as suas decisões, sempre que a posição adotada pela AT seja contrária à posição adotada pelos tribunais superiores em situações idênticas.

 

Deve assim entender-se que as alterações introduzidas ao artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT representam um bom ponto de partida e um contributo relevante (ainda que forçado) para reforçar a confiança dos contribuintes na atuação mas continuam a ser insuficientes para forçar a AT a acatar a jurisprudência dos tribunais superiores em tempo útil. Por outras palavras, a intenção do legislador foi válida e é de louvar mas a falta de concretização que ainda persiste retira alcance prático às referidas alterações.

 

Importa não esquecer que, com a implementação de diversos mecanismos, internos e internacionais, de combate à evasão fiscal e à erosão da base tributável e com a tendência internacional de procurar criar condições para uma tributação mínima harmonizada em situações particulares, a concorrência fiscal internacional é cada vez mais uma concorrência pelo procedimento, clareza, transparência, confiança e segurança do sistema jurídico-fiscal de cada uma das jurisdições.

 

Ora, uma atuação da AT (como aquela a que temos, por vezes, assistido em Portugal) pautada pela elevada litigância e pelo não acatamento, reiterado, da jurisprudência proferida pelos tribunais superiores não inspira confiança aos investidores e poderá até representar um claro desincentivo ao investimento estrangeiro em Portugal.

 

Em suma, as alterações legislativas introduzidas ao artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT são de louvar e representam um contributo relevante (ainda que forçado) para o reforço das garantias de contribuintes mas ficam ainda muito aquém do necessário para restaurar a confiança dos contribuintes na atuação da AT e para atrair (e reter) o investimento estrangeiro em Portugal.

 

Autora: Catarina Fernandes - Presidente do Conselho Fiscal / Membro da Comissão de Fiscal e Aduaneiro da JALP